domingo, 23 de outubro de 2011

Do PL da vereadora Rabello ao monopólio da CEF: notas sobre a OUC do Porto do Rio

A propósito da minha manifestação de apoio ao PL da vereadora Sonia Rabello, do PV, que destina 10% da receita da prefeitura do Rio de Janeiro com a venda dos CEPACs na área do Porto do Rio a urbanização e habitação social em duas AEIS anexas, chegou-me por e-mail a seguinte ponderação de um amigo petista:
“Os Certificados já foram todos adquiridos pela Caixa [Econômica Federal – CEF]. Não sei se um projeto de lei municipal pode incidir sobre uma ação da CEF, no caso dos 10%, já que ela [a] CEF vai vendê-los, é claro.”
É claro que há aqui um mal-entendido, cujo esclarecimento me dá, no entanto, uma boa oportunidade de refletir sobre a Operação Urbana Consorciada da Região do Porto do Rio.

Vejamos. 

Primeiro, cabe esclarecer, a CEF adquiriu os CEPACs do Porto Maravilha à prefeitura do Rio. 

O Projeto de Lei da vereadora propõe que a prefeitura, não a CEF, aplique 10% do valor arrecadado nas AEIS mencionadas. 

O que a vereadora propõe, portanto, é que o dinheiro arrecadado pela prefeitura (não os CEPACs da CEF), seja usado (10%) para subsidiar habitação social em dois setores, aliás bastante pouco valorizados, do espaço da OUC do Porto do Rio.

Ficaria assim minimamente assegurada a aplicação social da renda do solo recuperada pelo município, no âmbito da OUC, aspecto que, até onde posso perceber, a prefeitura virtualmente eliminou do projeto do “Porto Maravilha” na virada do governo. 

Aplicar a renda do solo recuperada pela municipalidade em habitação e urbanização social é muito diferente de aplicar em itens de valorização para o próprio projeto principal, voltado para habitação e espaços comercias “de mercado”. Trata-se, simplesmente, da diferença entre aplicar a renda recuperada para meramente promover a espiral de valorização da área ou para obter algum efeito redistributivo associado.

É certo que a viabilidade da própria OUC depende da aplicação da renda da terra recuperada por antecipação (via CEPACs) em itens de infraestrutura e urbanização que garantam a espiral de valorização do perímetro. Mas não é menos certo que o caráter minimamente redistributivo dessa recuperação depende ou bem de um plano urbanístico que contenha em si mesmo um zoneamento do tipo “inclusivo”, com obrigações para os incorporadores de mesclar empreendimentos de máxima rentabilidade como empreendimentos de rentabilidade “social” – como era o Plano sugerido pelo IPP e a consultoria francesa de 2008 – ou bem de medidas como a da vereadora Sônia Rabelo, que “carimba” parte da receita gerada pelos CEPACs para aplicação em projetos sociais em algum lugar do perímetro ou imediações. 

Ao final, o PL da vereadora dá à situação um aspecto similar ao das antigas Operações Interligadas paulistas: cobrar uma contrapartida de um plano de desenvolvimento urbanístico-imobiliário privado – no caso público, mas essencialmente privatista – para aplicar em urbanização e habitação social em benefício das populações circunvizinhas.

Nada disso, até aqui, tem a ver com a CEF, que entra no assunto como investidor-proprietário de certificados de potencial construtivo, vale dizer, como potencial incorporador. O papel da CEF é, até aqui, o mesmo dos investidores privados que, nas OUCs de São Paulo, adquirem os lotes de CEPACs colocados à venda, com preços ajustados, a cada etapa de desenvolvimento do projeto. E é aqui que começam as indagações mais intrigantes.

Primeiro, fica claro que a CEF assumiu um duplo papel: o de proprietária privada monopolista de todo o direito de construir na região da Portuária (à exceção dos coeficientes básicos) e também, portanto, de virtual agente público condutor do desenvolvimento do projeto. Com a venda de todo o potencial construtivo em um único lote a um agente público federal, a prefeitura do Rio de Janeiro, na prática, federalizou o projeto em troca da antecipação de toda (?) a receita de Outorga Onerosa do Direito de Construir na região, trocada pelos CEPACs adquiridos pela CEF. Em outras palavras, a prefeitura do Rio de Janeiro pode ter alienado a condução de seu mais importante projeto urbanístico a uma entidade – estatal, é verdade – de financiamento imobiliário. 

Em segundo lugar, ao vender a totalidade do potencial construtivo em um único lote a prefeitura do Rio renunciou também à possibilidade de ajustar tanto o planejamento de execução do projeto quanto o preço dos CEPACs de acordo com o ritmo de desenvolvimento das obras e da valorização de cada pedaço do perímetro. Caberá, daqui por diante, à CEF, exercer o papel de “regulador” da quantidade de CEPACs em circulação no mercado em face do nível da demanda, de maneira a evitar, por exemplo, a queda de seu preço, e ditar todos os aspectos fundamentais do projeto. 

(O adeus à autonomia municipal neste caso parece confirmar uma antiga tradição da prefeitura do Rio de Janeiro, de permitir, por exemplo, que o Metrô decida a totalidade dos aspectos urbanísticos envolvidos na sua implantação, de traçados e estações a elementos de engenharia no espaço público.)

Terceiro, tudo indica que a CEF entrou na operação, em comum acordo com a prefeitura e os incorporadores, como agente privado intermediário no mercado de CEPACs de maneira a assumir todos os riscos! Muito provavelmente, o leilão foi "pra inglês ver". Nenhum capitalista privado teve de adiantar um tostão para a prefeitura fazer qualquer obra. Se o Porto fracassar no mercado (coisa em que não creio, pelo menos por completo, dada a real escassez de terrenos nas proximidades do Centro do Rio) é a CEF que fica com o mico. 

Por outro lado, se o Porto for um sucesso de mercado, a CEF ficará com um lucro fabuloso. Nesse caso, a recuperação pública de renda do solo (dado que a CEF é um banco estatal) será dada pela exata proporção com que a CEF reparta esse lucro com os incorporadores, vale dizer, da relação entre o preço a que ela revender os CEPACs e o preço que o usuário final pagará pela terra (cota de terreno do m2 privativo adquirido). O que a CEF adiantou à Prefeitura é, na verdade, somente uma parte da renda potencial do solo a ser gerada na área. A "recuperação" pública (embora não municipal) da renda do solo só termina quando a CEF revender os CEPACs aos verdadeiros incorporadores e sua exata dimensão (proporção da renda) só se saberá quando for feita a venda do produto final. Eis um tema fascinante para os pesquisadores da Outorga Onerosa no Brasil.

Parece claro, também, que a CEF, como investidor estatal e principal agente da política habitacional do governo, tem a faca e o queijo na mão para interpretar a normativa municipal de modo a promover a habitação social na área. Produzir uma certa quantidade de imóveis menos rentáveis do que o mercado compraria, em benefício de um segmento determinado da demanda, é uma prerrogativa do proprietário dos CEPACs. Teríamos aqui um “segundo tempo”, agora federal, de aplicação social da recuperação da renda da terra na região portuária. Eu espero que a CEF o faça, assim contribuindo, dentre outras coisas, com uma certa heterogeneidade sócio-econômica na região – coisa que, aparentemente, o atual plano da Prefeitura vê com horror.

Passando a outro foco, eu não consigo encontrar, no saite do Porto Maravilha, um plano urbanístico minimamente completo para a área. Dá a impressão de que o ali contido são fragmentos de projeto, até bastante detalhados em alguns casos, arrumados de maneira a dar a impressão de que existe um projeto urbano – não vejo, por exemplo, o plano de massa, o desenho do cais com destinação dos armazéns, os espaços verdes adequadamente especificados, o plano de ocupação para o uso residencial, a localização de equipamentos básicos como escolas, delegacias, postos de saúde, hospitais etc. 

O projeto de circulação e transportes é o componente vital da inserção do novo Porto do Rio na trama urbana. Tampouco o que há no saite me convence: parece uma colagem apressada do antigo projeto VLT com os trajetos dos ônibus que hoje circulam por ali. Não está nada claro como é que esses elementos se integram nos grandes sistemas de trens, metrô e BRS da zona sul, como não sabemos como fica a ligação com São Cristóvão tampouco o destino da Rodoviária Novo Rio.

Fica-se a perguntar como foi que se colocou à venda todo o lote de CEPACs com base num plano tão precário. Será que basta o "mapa de potencial construtivo"? Dado que a CEF não botaria, eu imagino, essa montanha de dinheiro num plano esquemático, eu creio que um plano urbanístico completo deva existir em algum lugar. Mas onde está?

Dentre tudo o que falta no saite do Porto Maravilha, o mais importante é, sem dúvida, um quadro de contas especificamente desenhado para que o público possa entender a real distribuição de custos e receitas realizados e estimados da operação entre os principais agentes nela envolvidos – incluindo as empreiteiras contratadas para executar as obras, as incorporadoras que comprarão CEPACs e venderão os imóveis e os proprietários de terrenos. Tudo o que o público precisa saber e não está no saite eu considero, para todos os efeitos, "informação classificada". 

Até ter conseguido encontrar no saite do Porto Maravilha informações verdadeiramente esclarecedoras sobre a estrutura da operação, eu me recusarei a reconhecê-la como um empreendimento transparente. É responsabilidade da Prefeitura, da Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro (CDURP) – empresa de economia mista por ela controlada – e agora da CEF, a sócia maior do projeto – colocar tudo em pratos limpos, com uma linguagem destinada ao esclarecimento público. Transparência para brasileiro ver, já! Vamos ver aonde isso vai dar. 

Finalmente, como petista, mesmo desgarrado e de oposição, eu faço votos que a direção e os vereadores do PT encarem o PL da vereadora Rabello com espírito desarmado, se necessário propondo emendas comprovadamente do interesse dos trabalhadores. O princípio é o de sempre: o interesse dos trabalhadores está acima dos interesses particulares de quaisquer partidos – inclusive o nosso!

2011-10-23