sexta-feira, 16 de setembro de 2016

A ver navios

Em algum momento da minha trajetória como profissional do urbanismo a serviço da cidade do Rio de Janeiro, fui uma espécie de inspetor de navios.

Sim, navios. Eu representava a Secretaria de Urbanismo numa comissão encarregada da regulação e licenciamento de obras e reparos nas redes de serviços públicos instaladas sob as ruas da cidade. O aspecto geral dos canteiros, definidos por tapumes orlados de baldes vermelhos emborcados sobre luzes de sinalização noturna, justificava o termo com uma pitada de irreverência carioca. 

Participante, na época, colateral mas solidário, da encantada lua de mel da administração municipal com a arquitetura dos espaços públicos, pude confirmar, na supradita Comissão, a justeza do provérbio popular que diz que não se fazem omeletes sem quebrar os ovos. Dado que as vias públicas servem à circulação de pessoas, bens e serviços, e que os condutos nelas instalados estão sujeitos, como todos nós, a deterioração, obsolescência, rupturas, vazamentos e até explosões terríveis, resulta que conviver com os navios urbanos é preciso. Não têm de ser mal ajambrados como o da foto ao lado - e eu me penitencio por não ter contribuído para a melhoria do seu design -, mas não há como evitá-los, seja no Rio, Nova Iorque ou Copenhague. A boa notícia é que eles estão sempre mudando de lugar! 

Já pensou se não fosse assim? Pois leia esta. 

Instalou-se em Niterói, há alguns anos, um grande navio urbano para a execução de uma obra viária - o Mergulhão da Rua Marquês de Paraná, a mais importante artéria da cidade. Era uma obra controversa, não tanto por sua utilidade - fora proposta anos atrás pela consultoria de Jaime Lerner no âmbito de seu plano de circulação -, mas pelo fato de que o buraco começou a ser aberto, no fim do mandato do prefeito JR, sem os indispensáveis estudos de solo, hidrografia e drenagem - um provável cambalacho até hoje muito mal esclarecido. Pulemos essa parte. 

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O fato é que JR perdeu nas urnas e deixou, como parece ter sido a sua intenção, o abacaxi para a cidadania descascar. 

Escudado por uma ampla maioria de votos, dentre os quais o meu, seu sucessor RN decidiu, em vez de auditar a obra como recomendava a prudência e os princípios da boa governança, concluí-la tal como fora iniciada, com a imprescindível ajuda do então governador SC - na época empenhado em cavar outro buraco: o portentoso déficit nas contas do nosso estado, financiado no mercado internacional com receitas futuras de royalties do petróleo. 

Decisão fatal! Retirado o navio de tapumes, o que surge na esquina da Avenida Amaral Peixoto? Uma imensa barcaça de concreto bem no meio da rua, engalanada com vistosa pintura de bifurcação de via elevada! Um marco do urbanismo niteroiense, projetado para durar cem anos! 

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Atravessar a Marquês de Paraná neste ponto, no lado esquerdo da Amaral Peixoto, implica ou um desanimador passeio em U com dois longos intervalos semafóricos ou o sério risco de morrer esmagado na amurada. E que dizer do resultado estético e do impacto ambiental do empreendimento? (Econômico, também: quem consegue fazer vingar um negócio decente numa esquina onde ninguém mais passa?)

Assassinato da arquitetura urbana, puro e simples, premeditado e frio! Urbanicídio qualificado e sem atenuantes, que poderia ser evitado bastando fazer recuar 30 metros a rampa de descida e pedir ao estagiário para fazer o layout do cruzamento. 

Acesso ao túnel
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Mas tem mais. Você já viu, leitor, um mergulhão acabar ANTES do cruzamento que pretende evitar? 

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Imagino que por falta do dinheiro - ou do tempo político? - necessário para as indispensáveis desapropriações, os engenheiros encarregados da obra arranjaram espaço para posicionar a saída do túnel BEM NO MEIO do largo formado pelo entroncamento das ruas Dr Celestino, Eusébio de Queiroz e Marquês de Paraná!


Saída do túnel
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Durante algum tempo, o governo da cidade alardeou o agora SEU mergulhão como uma grande realização no campo dos transportes, resultando em significativa economia de tempo para os niteroienses. Hoje até o reivindica como seu trunfo eleitoral.

Não disse, naturalmente, e continua não dizendo, que essa economia é um privilégio dos cidadãos motorizados oriundos da Ponte Rio-Niterói em detrimento dos usuários de ônibus que partem da Estação das Barcas com destino aos bairros populares e não populares da Região Litorânea.

Todos os dias, a partir do meio da tarde, esses ônibus formam uma longa fila indiana na faixa seletiva da rua Dr Celestino para negociar, um a um, com os automóveis que sobem a mesma rua, o acesso à única faixa que lhes foi deixada, pelo conflito com a rampa de saída do Mergulhão, para entrar no fluxo da Marquês de Paraná! 


R Dr Celestino.
 Automóveis e coletivos oriundos das Barcas são "afunilados" contra a mureta da rampa de subida do mergulhão para tomar a única faixa disponível de acesso à Marquês de Paraná. Não há mais, nesta esquina, travessia de pedestres para o Hospital Antônio Pedro, ao fundo.
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Rua Marquês de Paraná / saída do túnel. 
Sem a desapropriação do edifício à esquerda, era melhor não ter mergulhão.
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Para o sistema de transporte de Niterói, o Mergulhão significa: automóveis têm precedência; ônibus, entrem na fila!

Para os pedestres, por outro lado, a estrutura física de saída do túnel acrescenta um bloqueio formidável à entrada do Hospital Universitário Antônio Pedro, equipamento urbano que é referência absoluta do lugar.


À esquerda o Hospital Universitário Antônio Pedro; à direita a estrutura da saída do Mergulhão. Esta travessia é o único acesso de pedestres ao Hospital desde o Centro da cidade
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Cagada na entrada, cagada na saída - com a permissão do leitor. E no caminho?

Ao nível da rua, o espaço livre gerado pela cobertura do túnel formou um vazio incompreensível, inóspito e absolutamente desorganizado. Uma terra de ninguém separada da pista de rolamento por um guarda-corpo rodoviário com recortes improvisados nos pontos de travessia semaforizada. 


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Dirão, talvez, que este espaço destina-se à urbanização da área adjacente a um futuro BRT, ou VLT, ligando a Estação da Barcas à Região Litorânea. Pode ser. Mas não há projeto, prazo, explicação e, o mais impressionante, sequer promessa eleitoral! 

Do interior do túnel nada direi. Observe bem o leitor a imagem abaixo ou, se puder, faça a sua própria experiência.

Interior do mergulhão
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O Mergulhão da Marquês de Paraná é, como se vê, um poderoso fator de degradação arquitetônica, ambiental e econômica da via pública mais crucial da cidadeUma reedição tardia do pior tipo de desatino urbanístico do período rodoviarista, que todos teríamos o direito de crer superado depois da demolição do Elevado da Perimetral, no Porto Maravilha. 

É difícil dizer se se trata de uma intervenção urbana mal concebida, de uma estrutura provisória, de uma solução improvisada, de uma obra inconclusa ou apenas de um projeto de engenharia grosseiro e mal-acabado. Com segurança, o Mergulhão é um sério candidato ao prêmio de pior obra urbana do Brasil no século XXI. Niterói não o merece.

Estou convencido: muito melhor teria sido fechar o buraco do JR, colocar o insigne ex-prefeito aos cuidados de uma Lava-Jato municipal e fazer, na Marquês de Paraná, um "Rio-Cidade" com faixa prefencial para ônibus, ciclovia, calçadas civilizadas e cruzamentos corretamente desenhados com semáforos e travessias de pedestres - especialidade indisputável da nossa secretária de Urbanismo! 

E para não deixar sem solução o mote desta mal-alinhavada prosa, concluo dizendo que, diante do U-Boot encalhado na Marquês de Paraná, os navios da minha comissão de licenciamento de obras e reparos em vias públicas não passavam mesmo, convenhamos, de inofensivos barquinhos de cartolina.

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Fotos: (Clique na imagem para ampliar)











2016-05-10